Destaque do mês de novembro: José Saramago
Em novembro celebra-se o nascimento de José Saramago, um dos maiores nomes da literatura portuguesa e universal. Nascido a 16 de novembro de 1922, em Azinhaga, no Ribatejo, Saramago deixou uma obra ímpar, marcada por uma escrita singular, profunda e desafiadora. Foi o primeiro autor português a receber o Prémio Nobel da Literatura, em 1998, “who with parables sustained by imagination, compassion and irony continually enables us once again to apprehend an elusory reality” (que, com parábolas sustentadas pela imaginação, compaixão e ironia, nos permite continuamente compreender uma realidade ilusória)- Comunicado Oficial da Academia Sueca (Nobel Prize Announcement, 1998).
A escrita de Saramago é imediatamente reconhecível: frases longas, pontuação pouco convencional, diálogos embutidos no texto, uma prosa que flui como um pensamento contínuo, sem pressas, convidando o leitor a mergulhar no ritmo da linguagem. A sua ironia subtil, o olhar crítico sobre o poder, a religião e a condição humana, e o constante questionamento da verdade e da memória tornam-no um autor de leitura exigente, mas profundamente recompensadora.
De entre a sua vasta obra, destacamos:
Memorial do Convento (1982)
Situado no reinado de D. João V, o romance parte de um episódio histórico — a construção do Convento de Mafra — para criar uma narrativa onde o real e o fantástico se entrelaçam. No centro da história estão Baltasar Sete-Sóis, um ex-soldado maneta, e Blimunda Sete-Luas, mulher dotada de dons misteriosos, capaz de ver o interior das pessoas e recolher as suas vontades. Juntos, ajudam o padre Bartolomeu de Gusmão na criação da “passarola”, uma máquina voadora movida pelo desejo humano.
Com uma linguagem poética e uma visão profundamente humana, Saramago transforma a epopeia nacional em homenagem ao povo anónimo, que ergueu as grandes obras da história sem nunca ser lembrado. É um romance sobre o amor, a fé, o sonho e o poder, mas também sobre a força invisível de quem constrói o mundo.
O Evangelho segundo Jesus Cristo (1991)
Nesta ousada reinterpretação do Novo Testamento, Saramago narra a vida de Jesus com um olhar humano, frágil e terreno. Desde a infância até à crucificação, acompanhamos um Jesus consciente das suas dúvidas, desejos e angústias, envolvido num diálogo constante — e por vezes conflituoso — com Deus e o Diabo, que aqui surgem como forças complementares.
O romance questiona a imagem tradicional do divino, levantando temas como o livre-arbítrio, a responsabilidade e o sofrimento imposto em nome da fé. Escrito com o tom irónico e compassivo característico de Saramago, é uma obra que desafia a leitura literal da Bíblia e propõe uma reflexão profunda sobre a moral, a religião e a condição humana. A polémica que gerou aquando da sua publicação apenas reforçou o seu impacto literário: um livro de fé e dúvida, de amor e rebeldia, onde o humano prevalece sobre o sagrado.
O Ano da Morte de Ricardo Reis (1984)
Após a morte de Fernando Pessoa, o seu heterónimo Ricardo Reis regressa ao Portugal salazarista de 1936, vindo do exílio no Brasil. Em Lisboa, vagueia pelas ruas e pela memória, dividido entre duas mulheres — Lídia, uma criada de hotel, e Marcenda, uma jovem enigmática —, enquanto conversa com o fantasma do próprio Pessoa. Nesta obra, Saramago explora a fronteira entre vida e morte, realidade e ficção, e reflete sobre a inércia e o desencanto perante um mundo em convulsão política e moral.
Terra do Pecado (1947)
Primeiro romance de Saramago, publicado muito antes de o autor encontrar a sua voz literária definitiva. A narrativa acompanha Maria Leonor, uma mulher casada e insatisfeita que luta contra a solidão e o desejo num ambiente rural e conservador. É uma obra de inspiração mais tradicional e psicológica, onde já se pressentem alguns dos temas que o autor viria a desenvolver — o conflito entre o indivíduo e a moral social, o peso da culpa e da convenção.
A Estátua e a Pedra (1997)
Nesta obra ensaística, Saramago reflete sobre a literatura, a criação artística e o papel do escritor. A “estátua” representa o que é fixo e permanente, enquanto a “pedra” simboliza o inacabado, o vivo e o mutável. Entre o simbólico e o filosófico, o autor discute a sua própria prática literária e a forma como o romance pode transformar o olhar sobre o mundo. É um texto breve, mas denso, que serve quase como manifesto da sua estética e pensamento.
Caim (2009)
Último romance publicado em vida, Caim revisita o Antigo Testamento através do olhar do próprio Caim, o fratricida condenado por Deus a vaguear pelo mundo. Ao longo da sua errância, Caim presencia vários episódios bíblicos — o sacrifício de Isaac, a destruição de Sodoma, a arca de Noé — e questiona a moralidade divina, confrontando Deus com as suas próprias contradições. Com ironia e irreverência, Saramago desmonta o texto sagrado e propõe uma reflexão sobre o mal, a justiça e o livre-arbítrio.
A Viagem do Elefante (2008)
Inspirado num episódio real do século XVI, o livro narra a incrível jornada de Salomão, um elefante oferecido pelo rei D. João III de Portugal ao arquiduque Maximiliano da Áustria. Acompanhado pelo seu tratador indiano, Subhro (ou Fritz, como os austríacos o rebatizam), o elefante atravessa a Europa, despertando a curiosidade e o espanto das populações. Com humor e ternura, Saramago transforma esta viagem insólita numa parábola sobre a condição humana, a humildade e o poder das pequenas coisas.
A Bagagem do Viajante (1973)
Reunião de crónicas publicadas originalmente na imprensa, este livro revela o Saramago observador do quotidiano, atento à vida simples, às injustiças e às contradições do mundo moderno. As suas reflexões — políticas, sociais, morais e até domésticas — formam uma “bagagem” de pensamentos que mostram o olhar crítico e humanista do autor, antes mesmo de alcançar o reconhecimento internacional.
A Caverna (2000)
Cipriano Algor, um oleiro de meia-idade, vive e trabalha com a filha e o genro numa pequena aldeia, fornecendo cerâmica a um gigantesco Centro comercial e habitacional. Quando o Centro deixa de precisar dos seus produtos, a família vê-se forçada a mudar-se para lá — descobrindo, nas suas profundezas, algo que põe em causa toda a ideia de progresso e civilização. Inspirado no mito platónico da caverna, o romance é uma poderosa alegoria sobre a alienação, a perda de identidade e o triunfo do consumo sobre o humano.
Objecto Quase (1978)
Coletânea de seis contos que exploram, de forma simbólica e satírica, as relações entre o poder, a morte e o destino. Entre eles, destacam-se “Embargo”, sobre um homem preso dentro do próprio carro, e “Centauro”, que mistura o mítico e o moderno. Estas narrativas curtas anunciam já o estilo e os temas que marcariam a obra futura de Saramago — a ironia, a crítica social e o questionamento do absurdo da existência.
Ler Saramago é entrar num diálogo constante com o mundo: com a história, com a linguagem e com a consciência humana. A sua obra convida-nos a olhar para o óbvio com desconfiança, a questionar as certezas e a descobrir, nas entrelinhas, a beleza e o absurdo da existência.

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